Não é possível combater redes internacionais do crime organizado com uma burocracia que atingiu seu ápice de desenvolvimento em meados do Século XX. A máfia é uma velha que não teme a modernidade e nós ainda estamos engatinhando em combatê-la.
"As autoridades brasileiras insistem em dizer que, no Brasil, não há crime organizado. Isso é estranho e absurdo."
Giusto Sciacchitano, procurador antimáfia.
"É o caso do jogo do bicho, o que mais se aproxima de um crime organizado como a da Máfia por aqui. (...) Esse é o modelo brasileiro. O resto é exagero."
Guaraci Mingardi, secretário de Serviços Públicos de Guarulhos.
Nem tudo são planos e intenções, na verdade, a maior parte de nossos problemas em viver em sociedade advém de uma omissão e visão burocratizada da vida. Refiro-me à atuação de nosso sistema de justiça que, agora depois do escândalo de corrupção dos governos petistas parece ter acordado de um sono profundo. Mas como podemos ver na afirmação de Guaraci Mingardi na epígrafe acima, o mais fácil é simplesmente negar a realidade e tratar a situação desesperadora em que vivemos na segurança pública como algo meramente pontual e pior, natural.
Evidente que isto não vem de agora. Leia neste artigo que escrevi em 2002, como o crime organizado já tinha uma grande penetração e influência na sociedade brasileira e sua estrutura de estado.
Por Anselmo Heidrich
O diretor geral do DEIC, Godofredo Bittencourt, levou os presos a sua sede para uma reunião tentando evitar o massacre que se seguiu em São Paulo a partir do dia 30 passado. 768 detentos seriam transferidos para o interior paulista, mas para que os comensais ficassem bem nutridos e, creio eu, assim colocarem suas ideias em ordem e com bom senso, o diretor ofereceu-lhes um rodízio de pizza. Um dos chefões, o “Marcola”, homem de fino gosto protestou e pediu chesse-picanha com fritas, no que foi prontamente atendido. Afinal, para quem tem três refeições ao dia, direito a visitas íntimas entre outros benefícios legais e outros ilegais que acaba adquirindo por “força da modernidade” como celulares, o que é um sanduíche?
Não sei, talvez todos estes petiscos tenham causado algum mal estar, pois o que se seguiu foi obra de alguém com mais que indigestão ou enjoo.
Também se esperava por algum pronunciamento, seja de nosso honorável presidente, líder latino-americano recém espoliado e “desmoralesado” pela Bolívia ou do candidato Alckmin. Nada. Mas, também era previsível a manifestação de nosso ministro da justiça, doutor Márcio Tomás Bastos, homem culto e douto nas sócio-lógicas da vida onde tudo se explica, marxianamente, pela malfadada desigualdade social. Sim, o sujeito veio a público dizer que a criminalidade só cessará com o desenvolvimento econômico. Engraçado... eu jurava ter ouvido de propagandas governamentais que já estávamos a galope ao primeiro mundo. Será que culparão a Bolívia?[1]
Numa tacada só, Bastos chamou os pobres de criminosos congênitos, pois se a pobreza é que causa tudo isto que vimos, então são eles! Será que nosso beautiful people do mundo das artes ou de nossa imprensa politicamente correta, dos Heródotos Barbeiros das CBNs não vêem aí alguma réstia de preconceito?
Interessante também que na visão do homem das leis que encarna, tudo não passe de uma simples lógica econômica. Pois, se as leis não são inadequadas, a justiça não é morosa, processos não são arquivados etc. tudo é causa menor, acessória, o problema mesmo reside no emprego formal. Como se para montar uma quadrilha não se precisasse de muito dinheiro.
Na maioria dos países africanos que não tem instituições ao estilo ocidental, solidamente edificadas, uma se destaca: as forças armadas. Por isto que tantos brasileiros creem que só o exército pode por fim a situação que vimos em São Paulo, em que pese o fato do estado de direito vir a acabar.
Bem, estou falando em nome do povo. Mas, o povo realmente se importa com isto?
Quando o jornalista Tim Lopes foi morto, ele tinha sido atraído por moradores ligados aos traficantes, com o argumento de que ele poderia filmar cenas de aliciamento de menores trocando sexo por droga em bailes funks no Rio de Janeiro. A armação feita com a ajuda de moradores contradiz a retórica gasta de que os moradores são sempre reféns dos bandidos.
Não faltaram os que dizem que o desemprego induz ao crime e às drogas ou que a miséria é que gera a violência. O analfabetismo gera a violência, a desigualdade gera a violência, o ócio gera violência, tudo serve como justificativa. Nós próprios podemos justificar a indiferença pela estrutura econômica, daí não haver meios repressivos que valham a pena acionar, daí o nada serve ou nada funciona.
Qualquer classe social tem suas ovelhas negras e elas estão crescendo, por uma simples razão: o crime compensa.
Já que agora a (falta de) educação virou desculpa para tudo, façamos algumas correlações:
- Massacre na cidade São Paulo;
- 75% do orçamento destinado à educação vão para o “ensino superior” e restos de 25% para o ensino básico.
Privatizemos as estatais, dando espaço subsidiado para centros de pesquisa e ampliemos o ensino básico e médio profissionalizante para vermos se, no longo prazo, a criminalidade não cai. Claro que, acompanhado de perto, por um sistema de repressão ao crime que já existe e não há mais como evitar. Sem as duas frentes de combate ao crime, a repressiva e a preventiva, nada funcionará. No entanto, isto é diferente do proselitismo de palanque de Lula que acusa a falta de investimento em educação nas últimas décadas como se agora houvesse algo neste sentido. Com o ECA e a aprovação automática não há educação que funcione.
E quando falo de crime, não estou me limitando a organizações mais violentas como o PCC ou o CV, mas também àquelas mais sorrateiras, como as máfias de roubo de carga de caminhões que dão propina aos policiais. Se a corrupção não for atacada, qualquer verba a mais para carros-patrulha ou armas não contará com um serviço de inteligência. Coisa, aliás, que o PCC provou saber usar.
Já se disse que o que falta para a completa “colombianização” da sociedade brasileira é o crime calar a imprensa. Não precisa, ele a compra. Quando o “cantor” Belo foi preso, cansei de ler que “ele não era o traficante”, como se isto, por si só, fosse algum salvo-conduto para que não tivesse cometido crime algum.
Há uma cultura geral que vê no mafioso uma espécie de don, um “uomini d’onore”. Isto não é só influência de Hollywood. Por anos não só italianos como muitos, mundo afora admiraram o homem de raízes humildes que respondia aos insultos valentemente e acima da lei, um justiceiro que se torna “a lei”. Analogamente, muitos brasileiros veem a solução na volta dos grupos de extermínio.
Descobrir os canais de autofinanciamento do narcotráfico via lavagem de dinheiro é coisa que nosso congresso não fará, infelizmente, pois isto atentaria contra si próprio. Daí, ao bom e velho estilo colonial criamos um pacote de projetos de lei contra o crime. Hoje em dia, o dinheiro que movimenta o crime é o mesmo, mas as polícias não o são. Sem um plano nacional, para não falar em conexões externas, como podemos querer enfrentar o crime organizado?
Mas, vejam bem, discordo da ideia de um grande polvo, com numerosos tentáculos que se espalham, como se nossa máfia fosse apenas uma subsidiária de um cérebro internacional. Se fosse assim, seria mais fácil, muitíssimo mais fácil desbaratar o crime organizado no Brasil. Na verdade, enquanto a mídia em peso avalia a atual situação como um confronto ao estado e a ordem vigente, como se o PCC fosse uma agremiação anarquista revolucionária, o que existe é um conluio com frações da própria burocracia estatal. O crime organizado é muito mais Lênin que Bakunin, por assim dizer.
O Brasil não só é um país emergente, como também é um país de máfias emergentes. Transporte e rotas da droga, venda de insumos destinados ao seu refino e comercialização e, principalmente, o fato de ser um paraíso para a lavagem de dinheiro, colocam o Brasil como um terreno fértil para o crime. Deveríamos começar procurando as atividades “limpas” que tiveram sua acumulação inicial com dinheiro sujo.
A máfia é uma velha que não teme a modernidade. Enquanto a cocaína tem um refluxo mundial, o Brasil se empenha na produção de novas drogas sintéticas, como o ecstasy. Custos menores e mercado afluente, facilidades para a compra de imóveis com seus lucros etc. são alguns dos motivadores desta organização no país.
Se encontrarem cocaína no Mato Grosso, as autoridades locais não investigarão de onde veio ou para onde iria. As polícias estaduais não têm método de trabalho em conjunto e o assunto morre aí. Nossa integração e capacidade de operação são também outro forte incentivo à criminalidade. Muitos confundem federação com isolamento das unidades políticas. Nós temos a polícia federal, a justiça federal, o ministério público federal, n-órgãos estaduais e vários estados que não apresentam sinergia entre si. Como fazer?
O que se veiculou quando a crise apertou em São Paulo? “Quem puder, saia de São Paulo.” Pode? Sim pode, com a nossa mesma típica perspicácia, foi um sonoro “fuja!” Não passamos de cordeirinhos amedrontados com os uivos de lobos que nem vemos.
No início da década, Guaraci Mingardi[2], secretário de serviços públicos de Guarulhos em São Paulo, afirmava taxativamente, sobre o PCC e o CV que “não temos crime organizado do porte da Máfia no Brasil (...) o comando [vermelho] saiu de cena e se pulverizou. Quanto ao PCC, é uma organização de cadeia, como a Camorra napolitana. Mas não sabemos se ele tem poder de fogo fora da carceragem.”
E agora, será que sabem?
[1] A antropóloga Alba Zaluar que já se debruçara sobre o tema em seu A Máquina e a Revolta afirmou que o ocorrido em São Paulo corresponde a um movimento comum de “bolivianização” da América Latina. Em sua visão, como uma sublevação das “classes oprimidas”.
[2] O secretário é um sociólogo que em estudo para o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, dividiu a criminalidade nacional em duas vertentes: a tradicional e a empresarial. Parece que tal dicotomia não deu conta de avaliar até onde uma organização “de carceragem” como o PCC conseguiu chegar.