Por Bernardo Santoro
Excelente reportagem do Globo de domingo discorre sobre um assunto que alertei há anos: não existe propriedade privada de imóveis no Brasil. Somos todos foreiros de um grande proprietário de enfiteuse, que é o Estado brasileiro.
Segundo o jornal, a Prefeitura do Rio de Janeiro, na ânsia por recursos que permitam fechar minimamente as contas do governo mais perdulário da nossa história e ainda tentar fazer um evento olímpico digno, resolveu jogar a conta na população carioca, abrindo licitação para que empresas concorram para promover um pente fino nos imóveis cariocas, de modo a saber quem é e quem não é oficialmente subordinado a um regime de enfiteuse na cidade.
Precisamos rever todo o nosso sistema tributário nacional para simplificá-lo e objetivá-lo
Enfiteuse é um tipo de direito real que funciona como um meio termo entre o aluguel e a plena propriedade. Enquanto no aluguel é clara a relação onde há um dono de imóvel e um locatário, e na plena propriedade há apenas um dono de imóvel, na enfiteuse existe um proprietário muito esvaziado em seus direitos (por isso chamado de nú-proprietário) e um foreiro que é praticamente um proprietário pleno, com a exceção de que precisa pagar ao nú-proprietário um “aluguel anual”, chamado de foro, e uma comissão em caso de venda da enfiteuse (“propriedade” – entre aspas mesmo) para um terceiro, que varia normalmente entre 2% e 5% nas enfiteuses brasileiras, chamada de laudêmio.
De acordo com a prefeitura, 70 mil imóveis que hoje estão sob posse direta de cariocas, não são propriedades plenas, mas sim enfiteuses, cujo nú-proprietário é a Prefeitura do Rio, e esses cariocas estariam então devendo muitos anos de foros e laudêmios para a Prefeitura. Mas essa cobrança é válida?
Essa pergunta será respondida em instantes. Antes, contudo, vale a pena inserirmos na discussão uma ideia intuída por uma das entrevistadas pelo jornal, a jornalista Alda de Almeida, lá apresentando duas indagações que precisam ser respondidas:
– “Se a prefeitura já cobra imposto de transmissão (o ITBI pago pelo comprador), por que cobrar laudêmio (do vendedor)? Já pagamos um IPTU alto. Por que pagar também o foro?”
A intuição da Sra. Alda foi exatamente a base de um texto que escrevi em 2010 para o querido, mas natimorto, partido LIBER em 2010, e reproduzido pelo Instituto Mises Brasil em 2011, cujo título foi “por que não existe propriedade privada de imóveis no Brasil“. Dentre os vários argumentos listados, um deles foi que todos os imóveis no Brasil, sejam urbanos ou rurais, não funcionam dentro de um regime de propriedade plena, pois os tributos que incidem sobre a propriedade privada no Brasil funcionam com a mesma lógica da enfiteuse. Abro aspas para parte do texto citado:
“No Brasil, como é sabido, existe uma grande carga tributária sobre a propriedade. Podemos destacar os seguintes: (i) ITBI, que é o imposto de transmissão de bens imóveis em compra e venda; (ii) ITCMD, que é o imposto de transmissão de bens imóveis em doação e herança; (iii) IPTU, que é o pagamento anual pelo simples fato de ter em sua posse um imóvel urbano; e, por fim, (iv) ITR, que é o pagamento anual pelo simples fato de ter em sua posse um imóvel rural.
Como visto, a enfiteuse é uma espécie de direito real que é uma “quase-propriedade”, pois o verdadeiro proprietário não costuma reivindicar de volta a propriedade e o enfiteuta paga, normalmente, o foro anual pelo simples fato de ter em sua posse um imóvel urbano ou rural e pode vender ou doar sua enfiteuse para terceiro, desde que pague o laudêmio, que é uma porcentagem do valor da venda desse terreno.
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Nota-se, claramente, que o IPTU e o ITR funcionam, hoje, sob o mesmo raciocínio do foro: são pagos ao governo pelo simples fato do cidadão ter posse sobre um imóvel. Já o ITBI e o ITCMD funcionam exatamente como o laudêmio: é um “pedágio” no momento da transferência da enfiteuse.
Logo, não existe direito de propriedade sobre imóveis no Brasil. Somos todos enfiteutas do grande e único proprietário de imóveis do Brasil: o estado brasileiro.”
No próprio texto original falo sobre como deveria ser um regime pleno de propriedade e em que base deveria ser construída uma teoria libertária de direitos de propriedade, e convido nosso leitor habitual a ler.
Agora podemos responder à questão apresentada mais acima: se é ou não válida essa nova cobrança. A resposta, de um ponto de vista estritamente legal é que sim, pois as cobranças teriam natureza jurídica completamente diversa. Enquanto a cobrança de foro e laudêmio possuem natureza civil, com base em um direito real de enfiteuse, os tributos sobre propriedade possuem, por óbvio, natureza tributária, aplicáveis por vontade do Estado a partir de autorizações constitucionais e legais previamente deliberadas e vinculadas.
Sendo de direito coisas distintas, embora de fato sejam cobranças absolutamente idênticas e tendo o mesmo destinatário, não podem ser consideradas “bis in idem”. É uma cobrança legal, embora, a partir de um critério de justiça liberal, seja uma cobrança ilegítima.
Provavelmente a Prefeitura irá cobrar apenas os créditos não prescritos (cinco anos para trás desde a data da cobrança judicial), mas isso não muda a indignação com essa cobrança. E a indignação com a cobrança da enfiteuse precisa, com urgência, ser estendida à indignação com a cobrança de tributos sobre a propriedade, pois tais tributos desnaturam o próprio conceito de propriedade privada e fazem do nosso Estado, como dito anteriormente, um grande latifundiário nacional. Precisamos rever todo o nosso sistema tributário nacional para simplificá-lo e objetivá-lo, tornando menos regressivo, mais amplo, mais direto e com menor quantidade de tributos. Quem sabe a questão da enfiteuse carioca sirva como ponto de partida para essa discussão.
Fonte: Instituto Liberal, 10/08/2015.