Neste ótimo artigo escrito há mais de um ano atrás, o cientista político José Roberto Bonifácio analisa o jogo político já prevendo como a operação da polícia federal e ministério público, mais que favorecer este ou aquele grupo, esta ou aquela oposição propõe uma "repaginação" do sistema político brasileiro. Urge entender esta relação para que saiamos do casuísmo das acusações de "isto favorece a oposição". O fato de que, eventualmente, circunstancialmente um grupo seja favorecido, como é o PT se eleições diretas fossem convocadas (o que é inconstitucional), não quer dizer que o processo como um todo tenda para isto. Agora sim, o vazamento de delações de uma empresa específica, como foi o da JBS feito por um procurador, daí sim tem, como se dizia antigamente, "linguiça debaixo desse angu". Algo precisa ser explicado, enfim... Mas, o fato é que já era previsto que o chumbo grosso do processo judicial afetaria todos grandes jogadores políticos ora em curso. Deixo vocês com este lúcido artigo, então.
V.D.
Porquê o funcionamento das instituições não alavanca as oposições? Ou: porquê as derrotas do governo do PT não representam ameaça à democracia?
As recentes decisões do TCU, do TSE, do STF e do MPF estão redesenhando a politica brasileira estruturalmente. Os elementos conjunturais presentes nas decisões plenárias do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal de Contas da União, a par de seu aparente ineditismo e amplitude, tendem a imprimir caracteristicas duráveis e marcantes no sistema político, modificando a interação das forças políticas e seu modus operandi, bem como as expectativas do público e da sociedade.
Hoje as instituições politicas e juridicas estão muito mais conectadas e antenadas na sociedade brasileiras do que em 1964 ou qualquer outro periodo historico com que se pretenda tecer comparações. Dai não ser cabível o uso indiscriminado e irresponsável da terminologia do "golpe de Estado" e seus correlatos e sinônimos.
Tanto as investigações levadas a efeito pelo juiz Moro, quanto a repercussão de seus achados testemunhais, documentais e periciais em outras instancias judiciais (TSE e STF sobretudo) vem criando uma série de jurisprudencias, entendimentos e procedimentos que afetam a todos os grandes players politicos brasileiros.
Há um aprendizado institucional que afeta a distribuição de recursos entre as forças políticas (como foi o caso da interdição das doações empresariais aos candidatos nas eleições), bem como as posições destas diante da sociedade (a implementação com viés radical das recentes Leis da Ficha Limpa, da Transparencia e da Improbidade Administrativa). Tanto os da situação (que por ora são os mais visiveis e afetados, por razões obvias e ineludiveis) quanto os da oposição, o que inclui tambem o PSDB. Tanto os do Estado, do setor público, quanto os da sociedade, do setor privado.
Em termos práticos e simbolicos, o saneamento da classe politica tem que oferecer à sociedade e à opinião publica a cabeça de ao menos um dirigente dos grandes partidos numa bandeja. Por ora, as cúpulas do PT e do PMDB tem sido as mais alvejadas pela ofensiva judicial e policial.
Crescem as pressões e reivindicações de que lideres oposicionistas implicados na teia de escandalos das empresas estatais sejam indiciados e julgados. Contudo se é verdade que a impunidade é função crescente no tempo também o é a assertiva de que a adequação entre factividade e normatividade seja a mesma em todos os tempos e lugares - especialmente num país com Estado tão vasto, denso e poderoso e dotado de sistema jurídico-institucional tão complexo e intrincado.
No senso comum, pululam prognosticos, ou apostas, tanto, judiciais e eleitorais, quase sempre mistos. Algo como um "efeito dominó" judicial, com diferentes sequencias, roteiros e conclusões se desenham aqui e ali. Há sequências que são pessimistas para o situacionismo [ p.ex.: 1- Dilma; 2- Cunha; 3- Lula; 4- Agripino; 5- Aecio ou Serra (alguem do PSDB); ...] e outras que o são para a oposição [ p.ex.: 1- Cunha; 2- Agripino; 3- Aecio ou Serra (alguem do PSDB); ...]. Destarte o teor folclórico e pouco rigoroso de que se revestem tais especulações por vezes aventam cenários mistos a estes dois apresentados, com diferentes sinais valorativos de factibilidade ou verossimilhança. Há, em suma, "apostas" para todos os gostos ou orientações político-ideológicas. E qualquer que seja a sua fundamentação lógica ou empírica se prestam bem à função de manter os distintos públicos em estado de atenção e mobilização, virtual ou presencial.
Contudo, objetivamente o que se pode ter por certo é que os desdobramentos da "Lava Jato" e dos movimentos institucionais paralelos e afins à mesma não sugerem que o cenário político presente e futuro tenha características de jogo de soma zero, mas de jogo de soma variável. Os setores que hoje estão a acumular vitórias podem e terão seus ganhos anulados ou mesmo revertidos a médio prazo. Quem quer que seja o sucessor de Dilma a médio prazo, seja Temer (hipotese de vitória da tese impedimentista, apos a rejeição das contas no TCU), seja Cunha (hipotese de vitória da tese impugnacionista, apos a rejeição das contas eleitorais no TSE), sejam Aécio ou Lula (hipotese de vitória das duas teses anteriores) uma Espada de Dâmocles penderá sobre a cabeça do ocupante da cadeira presidencial. Permanentemente.
O desdobramento mais provável, abrangente e durável das decisões das Cortes é que a sobrevivência dos políticos, de seus projetos, estratégias e reputações, se torna muito mais desafiadora e arriscada num ambiente politico onde as instituições se acham fora do controle das forças políticas e em que as expectativas e atenções da opinião pública se intensificam em torno das posições ou situações em que se colocam ou são colocadas aquelas forças.
Haverá certamente limites à capacidade ou pretensão demiúrgica dos magistrados e seria ocioso mencionar que muitas das melhores cabeças de nossa hierarquia juridica ignora o abismo entre o "país real" e o "país legal" tão celebrizada na obra de Francisco José de Oliveira Viana.
Mas se é líquido e certo que nenhum sistema institucional assim como nenhuma instituição isoladamente concernida pode se auto-reformar também o é aquela segundo a qual a implementação de normas e procedimentos por obra de atores exógenos ao jogo politico pode romper o proverbial impasse "ovo/galinha" na reforma do sistema politico, imprimindo-lhe transformações qualitativas.
Se estas mudanças sobrevem incrementalmente, como tem sido nos ultimos anos, é bem possível que não tenhamos percebido a diferença abissal hoje constatavel entre os estados anteriores e os atuais do sistema p lítico brasileiro. Se a aderência dos magistrados aos procedimentos que os auto-legitimam na aplicação de normas é o que tem assegurado a aplicação destas reformas politicas a "manu militari" (ou melhor "manu atrium", mão dos tribunais) como tem sido, por outro vem sendo a supervisão e o monitoramento estritos e habeis dos tribunais superiores (como é o caso do que o STF faz diuturnamente em relação ao MPF e ao TSE, bem como fará relativamente ao TCU) o que tem preservado o funcionamento das instituições como um sistema autorregulado e subtraído ao jogo de interesses e visões estreitas entre as forças políticas. O que tem impedido a degeneração do momento político em atentados institucionais com base no simples cálculo utilitário dos agentes politicos afetados.
Rio de Janeiro/RJ, 07-X-2015.