Se tem algo que sempre me impressionou, que não cessa de me causar assombro (e, decerto, impressiona e assombra a qualquer um que pense no assunto), é o fato de nações inteiras[1] se prostrarem perante evidentes psicopatas e seguir-lhes cegamente. Como pode uma Alemanha inteira seguir um lunático como Hitler, aceitando que é preciso eliminar todo o resto do mundo, segundo um critério biológico? Como pode uma Rússia inteira seguir um lunático como Lenin, aceitando que é preciso eliminar todo o resto do mundo, segundo um critério social? Como pode, em ambos os casos, pai se voltar contra filho, filho denunciar mãe, mãe entregar marido, todos renunciarem à vida, à liberdade, à capacidade de discernimento e decisão, tudo para a força estatal e pela força estatal?
Em Hitler e os alemães, o filósofo Eric Voegelin, estudioso e inimigo declarado das ideologias, explica que as condições à aceitação do “führer” foram criadas por um processo de deterioração da linguagem, dos conceitos, das formas de estabilizar as percepções da realidade, a partir de concepções materialistas e pseudocientíficas, capazes de embrutecer as gentes e instaurar o reino da mesquinharia na nação. Os capitães desse processo foram os jornalistas e os intelectuais; ou melhor, cada jornalista e cada intelectual alemão de então, porque Voegelin não os aponta como categorias, grupos abstratos, mas como indivíduos específicos (de fato, culpar a todos, coletivamente, seria o mesmo que culpar a ninguém).
O resumo que ofereço no parágrafo acima decerto não dá a dimensão da excelência da obra de Voegelin, mas oferece uma pista para entendermos de que forma é possível a obtenção de sucesso pelos fenômenos fascistas, como o nazismo e o socialismo. Entretanto, mesmo compreendendo Voegelin e sua análise sem par, tais fenômenos não deixavam de me impressionar. As explicações do filósofo alemão jogavam forte luz sobre o problema; mas a luminosidade voegeliana era ofuscada logo em seguida pelo assombro que me causava a contemplação das histórias e das imagens legadas pelo nazismo e pelo comunismo (ainda que estas confirmassem perfeitamente as teses de Voegelin). Contudo, minha perplexidade acabou, graças ao petismo.
Contemple a imagem abaixo. Vemos um pequeno grupo bloqueando uma rodovia. São 28 pessoas a bloquear um lado de uma estrada, interrompendo o trânsito e atrapalhando o dia de milhares de pessoas – com pneus queimados e sua própria presença na via. Considerando a fumaça na extremidade direita da fotografia e o fato de o outro lado da rodovia estar vazio, concluímos que há lá outro pequeno grupo a obstruir a passagem de outros milhares de pessoas. A imagem é de 15 de abril de 2016, sexta-feira, dois dias antes da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. Imagens semelhantes a essa surgiram por todo o Brasil, sempre com pequenos grupos de militantes pagos e treinados por PT, PC do B, PSOL, CUT, MST e outras associações de esquerda parando estradas e grandes cidades, em um dia útil, em horário de expediente.
Essa imagem poderia estar no livro de Eric Voegelin, acompanhada de notícias de jornais e análises acadêmicas seu contexto. Voegelin diria: “Vemos na imagem e em suas repercussões jornalísticas e acadêmicas exemplos perfeitos de distorções da realidade estabilizadas na linguagem, condições indispensáveis ao surgimento de fenômenos como Adolf Hitler e o nazismo.” Pois, o que a imagem mostra objetivamente e representa na conjuntura atual são pequenos grupos improdutivos atrapalhando a vida de milhões de brasileiros, de forma violenta e intransigente, a mando e a soldo de uma elite política e econômica, defendendo a permanência dessa elite no poder, a despeito da vontade da imensa maioria da população, ignorando o desejo do povo brasileiro – tudo isso sob o subterfúgio da defesa da “democracia”, da soberania do... povo. Ou seja, são empregados da elite atrapalhando a vida do povo, defendendo a elite e contrariando o povo, dizendo que assim procedem em favor do povo.
Não, eles não são hipócritas; ao contrário: são absolutamente coerentes. Eles têm certeza de que defendem o povo de si mesmo, de sua ignorância. Por isso sentem-se grandes democratas, verdadeiros justiceiros, indispensáveis libertadores. Contudo, nada mais são, em verdade, que o resultado da deterioração da percepção da realidade oferecida pela intelectualidade e sedimentada pelo jornalismo; são, enfim, condições vivas à ascensão ao poder de figuras autoritárias, opressoras e psicóticas, com perigosos projetos de concentração de poder. Vejam como isso está escancarado na linguagem das faixas, em sua semântica, em sua retórica. Percebam a inversão dos predicáveis: o anseio do povo brasileiro é chamado de “golpe”; a manutenção do poder de uma elite corrupta e corruptora é chamada de “democracia”; e os termos são articulados de forma imperativa, inflexível, imposta, em um cenário de belicosidade, com direito a pneus queimados, bandeira vermelha, direito de ir e vir cerceado e punhos cerrados. É como se dissessem: “Não adianta vocês reclamarem, vocês não podem sequer locomover-se sem nossa autorização. E isso que vocês querem, não terão; imperará o que nós queremos.”
Não ignoremos que a ação vista na imagem pode ser lícita, justa, necessária. Em um contexto de real opressão, é legítimo que o povo se levante, normalmente, aos poucos, em pequenas minorias, para combater a repressão estatal, causando incômodo na maioria silente. Mas sabemos que não é o caso brasileiro. Aqui, temos o absurdo de um protesto a favor, com uma minoria favorecida defendendo uma minoria poderosa e ignorando os anseios da quase totalidade da nação.
As condições para os atuais absurdos brasileiros, representados pela fotografia acima, são semelhantes aos absurdos que permitiram a tomada e a manutenção do poder por fascistas, nazistas e comunistas – e foram igualmente gestados no ventre do jornalismo e do intelectualismo local. Há décadas, intelectuais formam e orientam e se associam a grupos como o da fotografia. Há décadas, jornalistas legitimam esses grupos, chamando-os de movimentos sociais. Esses movimentos sociais sustentam bandeiras que todo o restante da sociedade abomina: da prática corriqueira do aborto à expropriação violenta de rendas e propriedades, passando pela legalização de drogas entorpecentes e pelo desarmamento de civis. Ou seja, esses movimentos são qualquer coisa, menos sociais. Esses grupos se identificam como movimentos democráticos, a favor do povo e contra as elites, mas têm ditaduras como modelos de poder e defendem políticos que enriqueceram de forma impressionante desde que assumiram o governo. Esses grupos chamam seus inimigos de “fascistas”, mas exigem a estatização de todas as forças produtivas e o controle e o juízo estatal sobre as relações sociais, exatamente como propugna o ideário fascista. Enfim, esses grupos não percebem tampouco descrevem a realidade como ela é, com os termos apropriados; ao contrário, utilizam-se dos termos para alterar a realidade, para re-significá-la. Olham para si mesmos, uma minoria truculenta e defensora da elite, e, em vez de descreverem-se com os termos corretos, descrevem-se com os termos que imaginam merecer, projetando no restolho uma miríade de rótulos descolados da realidade. São, então, os democratas, os progressistas, os trabalhadores, os engajados, os iluminados. Nós, que não concordamos com eles, somos os fascistas, os alienados, os golpistas.
O fato é que observamos nessa pequena parcela da população brasileira o processo de imbecilização verificado na Alemanha nazista como um todo. Cabe, então, o questionamento:
Por que no Brasil o processo de estupidificação através da deterioração da linguagem, da percepção da realidade, conduzido por jornalistas e intelectuais, atingiu somente pequena parcela da população?
Acontece que, por aqui, esse processo se manteve restrito a grupos porque não possuíamos uma tradição acadêmica solidificada. Aqui, o sistema de ensino, em todos seus níveis, é precário, de modo que a imensa maioria da população sempre esteve alijada dos benefícios de uma educação de qualidade e, ao mesmo tempo, imune aos possíveis malefícios dessa educação em seu modo mais perigoso, o academicismo ressentido, engajado e revolucionário. Não por acaso, os governos do PT não se dedicaram a quase nada da forma como se dedicaram a criar, artificialmente, uma penetração do ambiente universitário e supostamente intelectual em todo o território.
Não foi por acaso que, em seus 13 anos de governo, o PT investiu pesado em programas de acesso ao ensino superior, negligenciando criminosamente a educação básica. Os governos de Lula e Dilma esbanjaram o dinheiro recolhido do povo para levar exércitos de ignorantes despreparados aos bancos universitários. Milhões de pessoas que não tiveram seu processo de alfabetização plenamente ou mesmo minimamente concluído foram lisonjeados com diplomas de graduação e bolsas de estudo. Toda essa gente foi submetida a anos de intensas distorções e incompreensões da realidade e a currículos fundamentados em marxismo, desconstrucionismo e outras pseudociências. Toda essa gente tem saído das universidades com a arrogância típica ao ignorante, com uma dívida de gratidão para com o governo que lhe permitiu a realização de um sonho [o sonho de receber um papel pintado e carimbado, dizendo “Você é dotô!”] e com a mente preparada para dizer que um mais um não dá dois, que defender uma elite política e econômica e contrariar o povo é democracia, que oferecer privilégios a pequenos grupos de pressão em detrimento de todo o restante da população é ação afirmativa, que concentrar poder na mão do Estado é progressismo democrático e ser contrário a isso é fascismo.
Não, não estou dizendo que a ignorância não é uma bênção. Mas, sim, é preferível ser iletrado a ser mal-formado. O iletrado conta “apenas” com suas percepções diretas da realidade. Coloquei o “apenas” entre aspas porque isso – as percepções diretas – é tudo de que se precisa para entender a realidade. Os estudos servem à compreensão e a estabilização dessas percepções, para que possamos dizê-las de formas minimamente inteligíveis (mas sempre muito distante de sua substância real) e, no caso das técnicas e tecnologias, evoluir em sua utilização. Historicamente, os homens viviam a realidade; depois, perceberam as realidades e passaram a estabilizá-las e comunicá-las. Contudo, em vez de avançar nesse processo, aperfeiçoando a percepção e mesmo a realidade, parte dos estudiosos passou a “problematizar” a realidade, a duvidar do que é certo e a considerar o duvidoso. Por exemplo: este homem produzia lanças, aquele produzia machados, mas ambos precisavam de lanças e machados, de modo que passaram a trocar o que lhes era excedente. Isso é a realidade das relações comerciais, que depois foi percebida, estabilizada e aperfeiçoada. Muito tempo depois, vieram as problematizações, os desconstrucionismos e as inversões psicóticas que nos levaram a conceber que pode ser uma boa idéia concentrar todo o poder econômico na mão da burocracia estatal.
Ora, alguém discorda de que é mais prudente ouvir os conselhos de umavô iletrado que sustentou uma família com trabalho honesto, vivendo as referidas relações naturais de troca de fato, do que seguir as concepções distorcidas de um mestre revolucionário que jamais produziu algo de fato e vive de dar opiniões sobre algo que desconhece na prática, inspirado por uma ideologia totalmente descolada da realidade?
O ideal é que este avô iletrado fique culto, evolua em suas compreensões, estabilizando suas percepções com base na realidade. Na Alemanha pré-nazismo, contava-se – na imprensa, nas universidades, no empresariado, em casa, em todos os ambientes – com avós cultos e com mestres revolucionários. Já sabemos quem fez o estrago. No Brasil, dispomos apenas dos conselhos do avô iletrado (que está em todos os ambientes) ou das orientações do mestre revolucionário (limitado às universidades e redações). As pessoas da fotografia que ilustra este texto fizeram sua escolha; o restante da população não está representado na fotografia porque teve de viver a vida real.[2]
A esquerda não conseguiu concluir o processo que iniciou nos anos 1960 e que foi potencializado nos governos do PT – falo do processo de espalhar o veneno da educação afetada, ressentida e revolucionária a tempo de anestesiar por completo o país. Quase conseguiram. A missão desta nação, portanto, após derrubar o esquema petista, será a de espalhar o antídoto da simples percepção da realidade. Em primeiro lugar, teremos de reafirmar que um mais um dá dois, que a grama é verde, que a água molha. Cabe a nós – que, como nação, na melhor das hipóteses, somos experientes e justos avós iletrados – transformarmo-nos em avós cultos ou ouvir aqueles que assim se formarem, para que o canto da sereia problematizadora e ressentida seja inaudito, para que osmestres revolucionários não consigam mais fomentar ódio e destruição “por um mundo melhor” e sejam colocados em seu devido lugar: num canto, babando na gravata, sem se atrever a mover uma palha[3].
[1] Figura de linguagem; é claro que não foram “nações inteiras” que seguiram Hitler, Lenin, Stalin, Fidel etc., mas maiorias, enormes porções, grandes o suficiente para garantir a vitória dos fascínoras.
[2] No Brasil, além dos iletrados imunes à idiotia academicista e dos estúpidos adestrados, sobram ainda aqueles poucos que, como eu, passaram pelo ambiente universitário e não sucumbiram ao canto da sereia problematizadora. Pois, afirmo com toda a certeza que os indivíduos desse terceiro grupo (o menor de todos), enquanto estiveram expostos à mentalidade revolucionária universitária, não raro duvidaram da realidade, das verdades dos fatos, dos limites entre o certo e o errado.
[3] << Até o século XIX o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha, ou tirar um cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. Os “melhores” pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Deve-se a Marx o formidável despertar dos idiotas. Estes descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente etc. houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas. >> Nelson Rodrigues