Por Lucas Berlanza, publicado no Instituto Liberal
De todos os pensadores liberais, o jornalista e economista francês Fréderic Bastiat (1801-1850) é um dos mais admiráveis. Considero Bastiat um verdadeiro gênio, uma figura extraordinária. A França do século XIX era um cenário efervescente, em que muitas ideias estavam em discussão, e o socialismo era uma delas. Os socialistas formavam adeptos e incendiavam o debate público. Com paixão e insofismável lógica, Bastiat os enfrentou ao longo de sua carreira e chegou a travar um memorável debate com Proudhon. Mas o legado de Bastiat, em sua essência, se cristaliza como nunca em sua obra magna, A Lei.
A Lei é um livro que pode ser definido pelo seu descomunal poder de síntese e, ao mesmo tempo, por sua quase atemporalidade de alcance. Apesar de, em um aspecto geral, as tensões políticas da França daquele tempo serem uma versão-protótipo das principais questões e divisões ideológico-partidárias modernas, é peculiar a capacidade de Bastiat de levantar, em um trabalho tão pequeno, temas tão importantes ainda no presente. Sua proposta central é avaliar as relações da lei com o Estado e de que maneira o segundo se utiliza da primeira para subverter e expandir além do tolerável os limites de sua funcionalidade e agredir os direitos individuais.
Lei, na definição de Bastiat, é “a organização coletiva do direito individual de legítima defesa” – o direito de defender a integridade, a liberdade e a propriedade. Em uma sociedade em que ela se limitasse a isso, segundo Bastiat, as pessoas não teriam por que reclamar do governo, tendo respeitados a sua própria individualidade, “seu trabalho livre e os frutos de seu labor”, protegidos contra qualquer injustiça. Infelizmente, o grande sábio francês diagnostica que, já a seu tempo, a lei não costumava se restringir a esses limites saudáveis, o que trazia consequências muito ruins, limitando e destruindo direitos, e colocando a força coletiva “à disposição de inescrupulosos que desejavam, sem risco, explorar a pessoa, a liberdade e a propriedade alheia”, convertendo “a legítima defesa em crime para punir a legítima defesa”.
Isso se deu, nos tempos modernos, por algumas razões. Uma delas foi a mudança do pêndulo; se antes, certos grupos minoritários espoliavam o esforço de grandes grupos, hoje o troco é dado com a ênfase em uma “espoliação universal”, o que chega ao seu ápice com o agigantamento irresponsável doWelfare State. Num e noutro caso, temos pessoas querendo viver às custas das outras. Aí, diga-se de passagem, ao defender o combate a certos excessos afobados, Bastiat expressa uma posição polêmica: a de que, a seu ver, o voto não deveria ser universal, mas restrito a pessoas com determinada capacidade intelectual comprovada, de vez que, a seu ver, o voto já não é cedido a todos – crianças e mulheres, a seu tempo, não o podiam, e crianças ainda não o podem.
Se a lei pode “tirar de uns para dar a outros”, “lançar mão da riqueza adquirida por todas as classes para aumentar a de algumas classes”, então não haveria razão para que todos não desejassem lançar mão dela com esse fim, o que seria a ruína da sociedade. “Enquanto se admitiu que a lei possa ser desviada de seu propósito, que ela pode violar os direitos de propriedade em vez de garantí-los, então qualquer pessoa quererá participar fazendo leis, seja para proteger-se a si próprio contra a espoliação, seja para espoliar os outros”. Foi assim que a contemporaneidade viu brotar uma verdadeira “indústria de direitos”, com mulheres, gays, negros, políticos, artistas, promovendo badernas ou fazendo manipulações espúrias para acumular privilégios com alguma “boquinha” do Estado.
Entre as violações das leis aos direitos individuais, Bastiat menciona a escravidão – ainda existente na sua época como elemento legal em alguns países, inclusive no Brasil – e as “tarifas, protecionismos, benefícios, subvenções, incentivos, imposto progressivo, instrução gratuita, garantia de empregos, de lucros, de salário mínimo, de previdência social, de instrumentos de trabalho, gratuidade de crédito, etc.” Ao conjunto de todas essas últimas teses, ele rotulava nas categorias de “protecionismo, socialismo e comunismo” – que Bastiat considera estágios diferentes de evolução de uma mesma planta nociva. Os defensores dessas teses sustentam que são caridosos e defendem o bem da coletividade, mas Bastiat argumenta, em citação clássica, que lhe é “impossível separar a palavra fraternidade da palavra voluntária. Eu não consigo sinceramente entender como a fraternidade pode ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente destruída e, em consequência, a justiça legalmente pisada”.
Em perfeita descrição dos totalitarismos e tiranias dos séculos XX e XXI, Bastiat já dizia que os socialistas confundem “a distinção entre governo e sociedade”, alegando sempre que criticar as atitudes do primeiro significa estar contra a segunda. Então, o liberal francês questiona a ambição dos socialistas de utilizar os seres humanos para experimentos sociais, como se a sociedade fosse um objeto de estudo científico manuseado em laboratório; dogmáticos, consideram-se líderes iluminados capazes de moldá-la como bem entenderem. Põe-se, então, a analisar alguns autores, socialistas ou não, que a seu ver manifestaram posições em algum momento que tendiam a levar a lei além dos limites morais que lhe deveriam ser traçados. Já em 1850, ano de sua morte e também de publicação do opúsculo, Bastiat antecipava que o desejo dos socialistas, confirmado no seu futuro, era a ditadura. Desejam reprimir todas as liberdades em prol de ideias sublimes de organização da sociedade; Bastiat faz a pergunta óbvia: “se as tendências naturais da humanidade são tão más que se deve privá-la da liberdade, como se explica que as tendências dos organizadores possam ser boas? Por acaso os legisladores e seus agentes não fazem parte do gênero humano? Será que se julgam feitos de barro diferente daquele que serviu para formar o resto da humanidade?” Cremos que se julgam, sim, velho Bastiat. Os de ontem e os de hoje.
Assim, para ele, os melhores países serão aqueles em que “a lei intervém menos na atividade privada”, “a individualidade tem mais iniciativa e a opinião pública mais influência. São aqueles nos quais as engrenagens administrativas são menos numerosas e menos complicadas; os impostos menos pesados e menos desiguais; os descontentamentos populares menos excitados e menos justificáveis. São aqueles nos quais a responsabilidade dos indivíduos e das classes é mais efetiva e nos quais, por conseguinte, se os costumes não são perfeitos, tendem inexoravelmente a se corrigirem. São aqueles nos quais as transações comerciais, os convênios e as associações sofrem o mínimo de restrições; o trabalho, os capitais, a população sofrem menores perturbações”. Reconheceu o Brasil? Nós também não.
Com uma virulência que só seria igualada por liberais e libertários do século XX, como os da Escola Austríaca e Milton Friedman, A Lei é o testemunho imortal de uma mente lúcida e combativa. Sua consulta ainda tem muito a dizer e reverberar nos dias de hoje. É um alerta sólido para os limites que devemos pôr aos nossos utópicos delírios de grandeza, e para as contradições de quem se julga destinado a corrigir a humanidade.
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