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A Desigualdade nunca o tornou Marxista

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Sua garantia: se quebrar, paga quantia fixa ao dono da terra sem ônus para o mesmo. Seu contrato? Seu nome.

Por Anselmo Heidrich

Eu tive um amigo muito pobre, seus pais tiveram 12 filhos em Gravataí, cidade na região metropolitana de Porto Alegre. À época meio rural, meio urbana (anos 60-70). O sujeito estudou em colégio agrícola na vizinha Cachoeirinha, onde morei por quase uma década. Quando me mudei para lá, com 15 anos, meus amigos riram, pois morar naquela cidadezinha, que conseguia ser pior que Gravataí era um óbvio sinônimo de decadência.

Voltando ao sujeito, ele estudou neste colégio por um motivo muito simples: tinha verba estadual e dava quarto e comida pros alunos que lá ficavam em turno integral. Ao se formar no ensino médio, quando todos ou quase todos nossos camaradas iam para a faculdade, o sujeito não teve outra alternativa senão encarar o batente como representante de venda de químicos para a agricultura, aquilo que vulgarmente se chama de "agrotóxicos". Além, é claro de adubos e outros utensílios. Isto lá pelos idos dos anos 80.

Eu me formei, entrei na pós em São Paulo, a qual não conclui e me lancei no mercado de escolas particulares e cursinhos em São Paulo tendo voltado muito tempo depois. Acabei perdendo seu contato por um tempo... Lá pelos 90, voltei a encontra-lo, o que era um pouco difícil quando eu passava rapidamente por Cachoeirinha e, seu horário era das 7 às 21, 22h. Ele e a mulher compraram aparelho de som e TV numa casinha de madeira caindo aos pedaços onde moravam. Daquelas, cuja porta deve ter servido de inspiração aos filmes de ação hollywoodianos que com um chute qualquer se abria. Tudo a prestação, claro, pois não tinham fundos para pagar nada a vista. Certa noite ao voltarem para casa, na sala só tinha sobrado um sofá velho, cujas costuras se desfaziam. Levaram tudo.

Cachoeirinha tem uma ponte que atravessa o Rio Gravataí, tão poluído que a água que sai da torneira parece leite de tanto cloro que é adicionado e meus olhos ardiam após um bom banho. Hoje, aqui em Florianópolis não tenho mais este tipo de problema, mas quem vive por lá, ainda fica com os olhos vermelhos.

Uma vez por ano, no entanto, os olhos do sujeito não ardiam porque da perna pra baixo ele toma banho com a água da inundação do Gravataí (muito antes de se falar em "aquecimento global"), pois ele morava na várzea junto ao rio. Ele mudou a representação de produtos que vendia, foi fazer cursos rápidos em São Paulo para conhecer o produto e conseguir abrir uma loja, mas não deixou de visitar seus clientes a dezenas de quilômetros de sua casa. Juntou uma grana e construiu um sobrado no fundo do terreno. Tão logo ficou pronto, nem aproveitou e já vendeu, se capitalizando.

Conversávamos muito e eu era um defensor da reforma agrária e o sujeito ria e ria de mim. Eu falava com autoridade "conheço o MST, já visitei a Fazenda Annoni, sei como eles vivem...", primeiro acampamento dos sem terra a mais de 320 km de Porto Alegre. Ele disse "certo, vou te levar para conhecer uns assentamentos". Visitamos dois, um onde o pessoal realmente trabalhava, mas não tinham lucro suficiente, a produtividade era baixa e não dispunham de transporte para descartar os atravessadores; no outro, se esconderam quando nos viram chegando. Só vi porcos deitados na lama, nada mais.

- Como eles vivem aqui. Perguntei.
- Só esperam a grana do governo, me disse.
- Ué? Mas, já não ganharam terra?
- Ah ah ah, foi o que ouvi como resposta.

Meia década depois, lá estava o sujeito arrendando uma megapropriedade para plantar arroz.

- Êi! Por que tu não compra alguma propriedade em vez de gastar com aluguel?
- Anselmo... Se eu comprar, pago mais todos os anos que se só alugar.

Enquanto conversávamos, ele arrumava uma bomba d'água com uma tira de borracha improvisada... Isto se deu em uma época que eu ainda "ensinava" para vários alunos (seguindo meu livro didático) que arrendatários não têm terra e são "explorados" pelos proprietários. Voltei para São Paulo naquele verão e minhas aulas mudaram de tom, substancialmente: já não dizia mais que arrendatários eram todos pobres.

- Cara, por que tem tanta pobreza entre os agricultores, então? Tu é uma exceção, comentei.
- Não, Anselmo. A dificuldade deles é porque pensam como agricultores.

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Ele estava comprando dívidas de seus antigos clientes e cobrando-lhes com juros menores que qualquer banco. Eu poderia parar aqui, mas a saga deste "miserável" ainda vai muito mais longe... Quando a ecologia começou a entrar na moda, ele se interessou em saber como aplica-la. Técnicas como "plantio direto" dispensavam alguns produtos reduzindo custos. O que, normalmente, alguém faria, seria desdenhar disso, simplesmente porque é inovação e qualquer coisa que vá contra a tradição exige dedicação. E o resultado disso não poderia ser outro, os custos continuaram altos, assim como os preços finais. Ao longo de dez anos, como um pastor materialista, ensinava agricultores como economizar.

Quando falávamos de qualquer outra futilidade, como "que carro tu prefere?", ele contemporizava com o ano do veículo, cuja relação custo-benefício seria melhor... "Zero quilômetro desvaloriza 20% ao sair da loja". E não pagava por um, mas trocava por "sacas de arroz". Meia década depois, ele tinha duas grandes lojas de produtos agropecuários.

Ao fim do segundo mandato do FHC, ele estava bastante descontente com a política econômica e, com a alta do Real, o crédito sumiu e ele quebrou. Uma grande empresa paulista estava prestes a decretar sua falência por falta de pagamento. Ele pagava se os clientes lhe pagavam, pois aí estava seu capital de giro. Mas, como estavam quase todos quebrados, vocês podem deduzir qual foi o desfecho disso tudo... Do outro lado, seus vários fornecedores entendiam perfeitamente, mas esta empresa de grande porte não poderia abrir exceções. Talvez ele tivesse alcançado sua magnitude justamente por proceder assim, não sei.

Como o telefone não ajudava, pegou sua pick up com um advogado, um monte de papéis e veio para São Paulo. Chegou para pousar na minha casa de madrugada, pois se perdeu na Marginal e teve que pedir informações para algumas "mulheres estranhas" na Waldemar Ferreira ao lado da USP, o famoso "Putusp". Eram travestis. Demorou também porque ficou batendo papo por lá...

Conseguiu estender o prazo de pagamento e a dívida saltou de uns 300 mil para mais de um milhão, isso lá por 2004-2005, não lembro ao certo. Aceitar a situação e permanecer na informalidade seria muito mais fácil, mas isto implicava em chutar os empregados de suas duas empresas. Fazendo a limpa e cortando tudo que podia descobriu que seu cunhado o lesara em alguns milhares de reais. Como era religioso, espírita, maçom, o diabo não quis matar o cara. Coisa que se fosse comigo, “eu teria feito depois de torturar o infame” (tive que colocar entre aspas porque muitos idiotas não entendem licença poética).

Ele perdeu aquela batalha, teve ataque de pânico na rua desceu do carro pra brigar com não sei quem que estava buzinando, mas a guerra continuou. Hoje, ele arrenda outra área em Guaíba, outra cidade da metrópole porto-alegrense. O que ele faz lá? Arroz, mas contrata agricultor de Santa Catarina e garante o lucro do proprietário. Duas décadas atrás, ele movimentava 300 mil reais por mês ficando com 10%. Sua garantia: se quebrar, paga quantia fixa ao dono da terra sem ônus para o mesmo. Seu contrato? Seu nome.

A desigualdade nunca o tornou marxista. A desigualdade o desafiou. Eu perdi a conta dos rounds em que ele foi à lona durante sua vida, mas posso dizer que nunca foi nocauteado. Às vezes, não nos rendemos, simplesmente porque não temos outra opção além de continuar, mas já me disseram que sempre há outra opção e, nesse caso, com mulher e filhos seria o suicídio.

Outro dia li uma bobagem de um babaca que se intitulava “psiquiatra” traçando um perfil do esquerdopata, como Reynaldo Azevedo popularizou chamar o militante de esquerda fanático e burro. Dizia o farsante, que todo esquerdopata é um “filhinho-de-papai” que opta por um curso fácil para ficar fumando maconha no centro acadêmico e só fazer política estudantil (baderna). Antes fosse assim... Mas esse jeito de pensar em cima de estereótipos é como o marxista que acha que quem pertence a uma classe _deve_ ter um tipo de pensamento (a “consciência de classe”), mas na verdade as pessoas se distinguem em todos os grupos, inclusive dentro das classes sociais. Isso vai depender, entre outras coisas, do ambiente e opções de leitura que envolve o indivíduo, sobretudo jovem.

Eu poderia estar lá, como mais um... Esquerdopata. Esse sujeito que descrevi poderia estar lá, se ao invés de se debruçar sobre o Manual Técnico do Consultor Agroquímico tivesse lido Os Grandes Escritos Anarquistas, como eu. Mas qual foi a diferença? Ele se deparou com a realidade e não podia perder tempo, já eu tive sorte de ter uma família em melhor condição financeira e mais sorte ainda por ter gente próxima a mim dando exemplos. Diferente de colegas que tive na faculdade e na vida, eu soube ler, mesmo aquilo do qual discordo hoje em dia. Também “li” a história de vida de pessoas como fosse um livro, cujo epílogo incompleto tivesse um título E Você? Também vai sentar, chorar e culpar a desigualdade ou se levantar e lutar? Sem errar, você nunca saberá se acertou.

 


 

Sua garantia: se quebrar, paga quantia fixa ao dono da terra sem ônus para o mesmo. Seu contrato? Seu nome.

Alguma sugestão? LIBERDADE.


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