“Tem mais racismo aqui, na Cuba comunista, do que nas piores partes do Mississipi”!
(Garland Grant, ex-membro dos Panteras Negras, preso em Cuba após sequestrar um avião, em 1971, nos EUA, e fugir para a Ilha do Dr. Castro).
Antes que a esquerda espalhasse suas narrativas vitimistas na periferia – por intermédio, sobretudo, das teorias europeias de Rousseau, Foucault, Bourdieuet caterva – e minasse completamente sua capacidade de autointerpretação e resistência, quem fornecia à juventude as lentes para a compreensão da realidade era basicamente o RAP. Para a minha geração (que nasceu na década de 1970), grupos como Racionais MC’s, Thaide e DJ Hum e DMN preenchiam aImaginação Moral dos garotos que, sem acesso aos Contos de Fadas, eram advertidos pelos insistentes apelos dos pais e das crônicas de Mano Brown, Ndee Naldinho etc. Era através do RAP que os jovens da periferia interpretavam sua própria realidade, e tal autointerpretação era quase sempre profética; quando não, divertida. E era isso que dava Sentido e Ordem a essa juventude. Meu contato com a realidade foi muito influenciado pela música e por todo um universo de valores que ela carregava. Tudo fazia sentido para mim quando eu ouvia que: “a mudança estará em nossa consciência, praticando nossos atos com coerência; e a consequência será o fim do próprio medo, pois quem gosta de nós, somos nós mesmos” (Brown).
O filósofo Eric Voegelin estava certo:
“Quem quer que tente interpretar de uma maneira noética e crítica a ordem do homem, da sociedade e da história verifica que, ao tempo desta tentativa, o campo já está ocupado por outras interpretações. Pois cada sociedade é constituída por uma autointerpretação de sua ordem, e é por isso que cada sociedade conhecida na história produz símbolos – míticos, revelatórios, apocalípticos, gnósticos, teológicos, ideológicos, e assim por diante – pelos quais expressa sua experiênciade ordem. Chamo esses atos de autointerpretação encontrados na realidade política de ‘interpretações não noéticas’” […] “As interpretações não noéticas não apenas precedem as interpretações noéticas no tempo; mesmo depois do aparecimento destas últimas, elas permanecem a forma da autointerpretação da sociedade, que a tentativa noética sempre encontra, confrontando-a. Sociedades cuja autocompreensão constitutiva é noética não existem. A peculiaridade desse relacionamento sugere que as interpretações noéticas, por razões que serão examinadas posteriormente, podem funcionar como um corretivo ou suplemento para as interpretações não noéticas, mas não podem substituí-las”[1].
Ou seja, antes das interpretações acadêmicas (noéticas) fornecidas por pesquisadores militantes e suas ONG’s, a periferia já possuía um modo de autointerpretação (não-noética), e era necessário que essas interpretações noéticas fossem mediadas pela autointerpretação que lá estava anteriormente. Era essa autointerpretação que advertia o jovem da periferia a prestar atenção à sua condição e buscar melhorá-la apesar dos reveses: a polícia, o tráfico, o desemprego, a violência, o crime.
Fiz coro com os Racionais MC’s, advertindo os próprios negros:
“[…] Você não me escuta
Ou não entende o que eu falo
Procuro te dar um toque
E sou chamado de preto otário,
Atrasado, revoltado
Pode crer
Estamos jogando com um baralho marcado
Não quero ser o mais certo
E sim um mano esperto
Não sei se você me entende, mas eu distingo o errado do certo.
(e mano se vai continuar com essas idéias aí? Tá me tirando? Dá licença)
A verdade é que enquanto eu reparo meus erros
Você sequer admite os seus.
Limitado é seu pensamento, você mesmo quer
Falar sobre mulher,
Seu principal passatempo,
O Dom Juan das vagabundas, eu lamento,
Vive contando vantagem se dizendo o tal
Mas simplesmente falta postura, QI suficiente.
Me diga alguma coisa que ainda não sei.
Malandros como você muitos finados contei.
Não sabe sequer dizer,
Veja só você!, o número de cor do seu próprio RG.
Então, Príncipe dos Burros, limitado!
Nesse exato momento foi coroado,
Diga qual a sua origem, quem é você?
Você não sabe responder.
Negro Limitado”.
Ou avaliando o efeito das drogas e do álcool na periferia:
“[…] Mas aí, se quiser se destruir está no lugar certo
Tem bebida e cocaína sempre por perto,
A cada esquina, 100, 200 metros:
Nem sempre é bom ser esperto.
Schmidt, Taurus, Rossi, Dreyer ou Campari,
Pronúncia agradável,
estrago inevitável,
Nomes estrangeiros que estão no nosso morro pra
matar (M. E. R. D. A.)
Como se fosse hoje ainda me lembro,
7 horas, sábado, 4 de Dezembro
Uma bala, uma moto, com 2 imbecis
Mataram nosso mano que fazia o morro mais feliz,
E indiretamente ainda faz,
mano Rogério esteja em paz
Vigiando lá de cima
A molecada do Parque Regina
[…]
Tô cansado dessa porra,
de toda essa bobagem,
Alcolismo, vingança, treta, malandragem.
Mãe angustiada, filho problemático
Famílias destruídas,
fins de semana trágicos.
O sistema quer isso
a molecada tem que aprender
Fim de semana no Parque Ipê”.
Ou ainda – quem diria?! – um sábio conselho de Netinho de Paula, hoje um político socialista cassado (em 2015) por infidelidade partidária:
“Pode crer, Racionais Mc’s e Negritude Junior juntos. Vamos investir em nósmesmos, mantendo distância das drogas e do álcool. Aí rapaziada do Parque Ipê, Jd. São Luiz, Jd. Ingá, Parque Arariba, Váz de Lima, Morro do Piolho, Vale das Virtudes e Pirajussara. É isso aí mano Brown!”.
Isso, para um jovem pobre, era a crônica da periferia. Entre uma e outra palavra de ordem, um conselho, uma admoestação, um vaticínio.
Qual garoto negro da minha geração não se lembra da excelente “Mova-se”, do grupo DMN?
“[…] A moeda da sorte subiu e não desceu,
E a esperança que tinha diminuiu não cresceu,
O apogeu do nada,
Metralhadora sem bala,
Um boneco que fala após ter dado corda.
Não renasce mais a esperança,
São muitas portas fechadas
Somente uma aberta,
Muito discreta dizendo quem vai, quem fica.
Hei! Eu não estou na lista!
Acredite nisso é uma prisão sem muro,
Onde o pão ainda é duro e nada é seguro
Se apoiar em quem se estamos sozinhos?
Eu não guardo segredo,
Eu vou mais além
Mova-se!”
Por fim, a advertência de LF (DMN) e Edy Rock (Racionais) na pesadíssima H. Aço:
“[…] Famílias inteiras estão caindo na vala,
perdendo a resistência
e o pesadelo não pára;
ser Homem de Aço é resistir,
não posso dar as costas se o problema mora aqui;
eu não vou fugir
nem fingir que não vi,
nem me distrair,
nenhum playboy paga pau vai rir de mim.
Tenho uma meta a seguir,
sou fruto daqui,
se for pra somar:
ei, mano, chega aí!
pra ser mais um braço,
um guerreiro arregaço,
contra o poder ser a pedra no sapato
sem marra, mentira, incerteza, sem falha,
um centroavante nessa grande batalha,
e no limite a humildade faça o seu espaço
pra ser também um H. Aço.”
Não se trata de gostar ou não de RAP, da letra ou da música; se é poesia ou não, se tem qualidade literária ou não. A questão aqui é perceber aautointerpretação, o senso comum da periferia e sua capacidade de compreender qual era a sua responsabilidade e o que cabia ao Governo – ou até à elite. Não nos esqueçamos da excepcional Política (aqui), sucesso do grupo Athalyba e a Firma, altamente intelectualizada e mais que apropriada para o momento brasileiro atual.
Quando essa autointerpretação foi substituída sumariamente por teses que não nasceram na periferia, mas em gabinetes confortáveis de Universidades renomadas, por gente que só conhece a pobreza de ouvir falar, lugares-comuns com “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”, ou que todo sistema de educação é político e repressivo, ou, ainda, que existe um racismo da inteligência perpetrado pela classe dominante a fim de subjugar os pretos-e-pobres, a capacidade de compreensão da periferia é destruída e substituída por ideologias[1]. Some-se a isso o ocaso da Educação, a explosão do analfabetismo funcional, e duas gerações de jovens completamente incapazes de compreender as complexidades da vida [falo como professor], e temos a fórmula mágica para a formação de uma militância cega, pronta para obedecer fielmente ao primeiro que ousar escravizar suas mentes.
Lembrando que: ser livre é, antes de tudo, resistir ao desejo de obedecer alguém somente para não ser responsável pelos próprios atos. A liberdade é, antes de tudo, liberdade de consciência.
E o fato do RAP também ter mudado ao longo dos anos é um sinal claro dainfluência ideológica que sofreu (RAP sobre Marighella?!). Não que não tivesse, desde o começo, um apelo, digamos, socialista, mas penso que era algo um tanto insipiente. Hoje é comum vermos rappers enaltecendo Che Guevara, que desprezava os negros, e cujo regime que ajudou a construir já teve (se é que ainda não tem) 85% de negros entre seus presos políticos. O etnólogo cubano Carlos Moore que nos diga.
Como diz o economista americano Thomas Sowell, o socialismo não resiste a três perguntas básicas – e por isso mesmo é incapaz de ajudar os pretos-e-pobres:
- Comparar com o quê?
- A que custo?
- Que prova concreta tens?
Enquanto a periferia não voltar a ser dona de seu próprio destino – pois o Poder Público só finge ajudar para angariar seus votos na base da demagogia –, os negros, os pobres, os ricos, enfim, os brasileiros serão cada vez mais divididos em classes manipuláveis e cada vez menos terão condições de resistir e buscar soluções para seus próprios problemas.
Se há um pedido que a periferia deve fazer ao Estado e aos Movimentos Sociais a ele ligados, esse é: devolvam-nos a tão sonhada LIBERDADE!
Paulo Cruz
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[1] O termo ideologia foi cunhado na época de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Antoine-Louis-Claude Destutt de Tracy (1754-1836) , o autor de Les Elements D’Ideologie [Os Elementos da Ideologia], era um “metafísico abstrato” do tipo que, desde então, se tornou comum na margem esquerda do Sena, um ponto de encontro para ideólogos incipientes, entre os quais, em décadas recentes, o famoso libertador Kampuchea Democrático, Pol Pot (1928-1998). […] Napoleão desprezou os ideólogos ao observar que o mundo não é governado por ideias abstratas, mas pela imaginação. […] A ideologia torna impossível o compromisso político […]. Quando o fanatismo ideológico rejeita qualquer solução conciliatória, os fracos vão para o paredão. As atrocidades ideológicas do “Terceiro Mundo”, nas últimas décadas, ilustram o ponto: os massacres políticos no Congo, Timor Guiné Equatorial, Chade, Camboja, Uganda, Iêmen, El Salvador, Afeganistão e Somália. […] As ideologias são acometidas de um feroz facciosismo, na base do princípio da fraternidade – ou morte. As revoluções devoram os seus filhos. Por outro lado, o políticos prudentes, rejeitando a ilusão de uma verdade política absoluta, diante da qual todo cidadão deve se curvar, entendem que as estruturas políticas e econômicas não são meros produtos de uma teoria, a serem erigidos num dia e demolidos no outro; pelo contrário, instituições sociais se desenvolvem ao longo dos séculos, como se fossem orgânicas. O reformador radical, proclamando-se onisciente, derruba todos os rivais para chegar mais rapidamente ao Paraíso Terreno. (KIRK, Russell. A Política da Prudência. É Realizações, 2013, pp. 92-93;98. Tradução: Márcia Xavier de Brito).
[1] VOEGELIN, Eric. “Anamnese – Da teoria da História e da Política”. É Realizações, 2009, p. 427. Tradução: Elpídio Fonseca.