Caros leitores, aqui temos a apresentação de Luis Lopes Diniz Filho, professor da UFPR e contumaz crítico da doutrinação do ensino em geral e, particularmente em sua área, a Geografia. Cabe a leitura deste texto em que o autor desmascara uma professora que nega a doutrinação, mas defende sua prática sem sequer entender o conceito do que seja.
V.D.
Na última sexta, aconteceu no Departamento de Geografia da UFPR um "debate-ação" (sic) com o tema A reforma do ensino médio na Geografia: enfrentando a desinformação e o descaso. Como é de praxe nos eventos de Geografia, os três debatedores convidados tinham as mesmas opiniões sobre o tema, informadas por teorias e ideologias de esquerda radicais. Então, só houve debate durante a sessão de perguntas que se seguiu às exposições porque eu participei do evento, visto que, a julgar pelas perguntas não dirigidas a mim, ninguém discordou de nada!
Repetições
Com efeito, embora o tema do debate fosse a reforma do ensino médio, a primeira expositora, professora Mônica Ribeiro da Silva, fez críticas enfáticas ao Escola Sem Partido - ESP. E isso foi bom, pois tive oportunidade de debater e também de conferir se ela tinha alguma crítica nova para acrescentar ao debate.
E a expositora não tinha! Ela não apresentou nenhum exemplo de livro didático que não faça doutrinação esquerdista e nem citou qualquer pesquisa que aponte não haver unilateralismo nos conteúdos desses livros. Tudo o que fez foi repetir que não há sentido em acusar a ocorrência de doutrinação no ensino porque a neutralidade é algo que não existe e nem pode existir, seguindo assim a mesma linha de argumentação de
Daniel Cara e dos demais críticos do ESP. Disse também que o ESP supõe que o aluno é uma "folha em branco", ou seja, alguém incapaz de refletir sobre os conhecimentos aprendidos com base num repertório de informações e de valores provenientes da família, dos círculos de amigos, dos meios de comunicação, etc. Também nesse caso, o argumento apenas repete o que outros críticos afirmam (
aqui).
Ora, o argumento de que a neutralidade é impossível serve apenas para disfarçar o fato de que há várias diretrizes que os professores podem e devem adotar para garantir o máximo de objetividade possível aos conteúdos ministrados, e é justamente esse esforço na busca por objetividade que dá substância ao compromisso que os professores devem ter com a neutralidade política e ideológica. Eu mesmo já apresentei três dessas diretrizes neste blog (
aqui).
E o argumento da "folha em branco", conforme eu afirmei durante o debate, também não se sustenta. Afinal, o ESP não diz que o professor é quem constrói a consciência política e moral dos alunos, mas apenas que o professor não tem o direito de usar o acesso a uma plateia cativa, que são os estudantes, para promover suas próprias visões ideológicas e/ou para fazer propaganda política, partidária ou corporativista. É o que afirmam o primeiro e o terceiro dos
Deveres do Professor. Além do mais, quando o ESP afirma que o quarto Dever do Professor é apresentar ao aluno visões diferentes da realidade ao tratar de temas políticos, sócio-culturais e econômicos, deixa explícita a concepção de que o ensino deve levar o aluno a refletir autonomamente sobre tais visões, reflexão essa que envolve, obviamente, informações obtidas dentro e fora da escola.
Contradição
Depois de repetir à exaustão esses argumentos baseados na deturpação da proposta do cartaz anti-doutrinação, a professora Mônica acabou se traindo. Foi no momento em que ela disse que, se não pode existir neutralidade no ensino, isso não significa que a escola não tenha um papel desideologizador a cumprir. Exemplo disso seria quando o professor desnuda as "mentiras" e discursos ideológicos veiculados pela "mídia".
Respondi dizendo que, dessa forma, a professora tinha acabado de defender explicitamente que o professor faça doutrinação teórica e ideológica em sala de aula, já que ela empregou o conceito marxista de ideologia como falsa consciência da realidade para qualificar qualquer discurso não marxista como uma mentira na qual o professor não deve deixar que o aluno acredite.
Realmente, o conceito de ideologia como falsa consciência foi elaborado por Marx e é amplamente utilizado por autores marxistas desde o período da Segunda Internacional Comunista - Marilena Chauí o emprega até hoje, inclusive em seu livro didático. Nessa formulação, ideologia é qualquer discurso, seja científico, político, artístico, religioso ou jornalístico, que negue a validade da teoria marxista da luta de classes. Ou seja, qualquer discurso que negue a existência de interesses de classes inconciliáveis que estruturam a sociedade capitalista ou que apresente os interesses particulares de uma classe como se fossem interesses gerais da sociedade. Tal conceito implica necessariamente uma visão cientificista, portanto, já que supõe que a teoria marxista é uma verdade científica inquestionável e que todos os discursos não marxistas devem ser classificados como ideologias que expressam a visão de mundo e interesses das classes dominantes[*].
Qualquer professor que raciocine nos termos desse conceito de ideologia, como quer a professora Mônica, vai se colocar diante dos alunos como o dono de uma verdade marxista imbuído da missão de "desmentir" a "mídia", de sorte que o aluno não poderá discordar do professor sem estar enganado. Assim, esse professor irá apresentar aos alunos uma visão unilateral, a teoria marxista, e deixá-los na ignorância quanto à existência de outras teorias explicativas da sociedade. Ou, caso comente alguma teoria alternativa àquela, será para dizer que tal teoria é só discurso ideológico, isto é, uma mentira. E as duas atitudes nada mais são do que doutrinação teórica e ideológica em estado puro (Diniz Filho, 2013).
Sem resposta
Qual foi a resposta da professora Mônica a essa crítica? Nenhuma. Ela ignorou essa fala e se pôs a refutar a ideia de que o professor deve trabalhar o pluralismo teórico em sala de aula. Segundo afirmou, o pluralismo não garante isenção, pois, quando o professor apresenta pontos de vista distintos, ele ao mesmo tempo se posiciona sobre estes.De novo, a professora ignora ou finge ignorar que há diretrizes que podem e devem ser seguidas para que a apresentação de visões opostas sobre o mesmo assunto se faça de modo a minimizar a interferência de juízos do professor sobre tais visões, e é dever do professor adotar tais diretrizes. Uma delas é a fidelidade aos fatos. Outra é permitir que o aluno leia textos com visões diferentes sobre um mesmo assunto muito polêmico, inclusive textos dos quais o professor discorda. Outra ainda é concentrar a elaboração dos conteúdos nas teorias e debates científicos (
aqui).Em suma, a professora Mônica Ribeiro da Silva sustenta que neutralidade e pluralismo são impossíveis apenas porque pensa que o professor deve ensinar aos alunos uma única visão da realidade, formada pelas teorias críticas com as quais ela concorda, e acusar todo discurso alternativo de ser ideológico. Ela defende um ensino doutrinador ao mesmo tempo em que afirma não existir doutrinação.
Em tempo
De início, a proposta do cartaz anti-doutrinação previa uma lista de cinco Deveres do Professor. Hoje, vemos ali seis. Eu
discordo do quinto, mas deixo essa questão para outra hora.
[*] Nota: mesmo entre autores marxistas há críticas contra o conceito de ideologia como falsa consciência, o qual serve apenas para afirmar que o marxismo é a verdade e que todo discurso não marxista é mentiroso por definição (Moraes, 1988, p. 39-40).
- - - - - - - - - -
DINIZ FILHO, L. L. Por uma crítica da geografia crítica. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2013.
MORAES, A. C. R. Ideologias geográficas: espaço, cultura e política no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1988.